Mostra cancelada pela Santa Casa de Viana do Castelo abre na Casa do Marco na Serra d’Arga
A exposição “Cumplicidades” abre ao público no sábado, na Casa do Marco, na Serra d’Arga, após ter sido cancelada, na sexta-feira, a minutos da sua inauguração na galeria da Misericórdia de Viana do Castelo, por alegados “conteúdos impróprios”.
Em declarações hoje à agência Lusa, Carlos da Torre, que juntamente com Arnaldo Alves são os autores das obras de arte que integram a mostra, explicou que a Casa do Marco, pertence ao pintor Mário Rocha, “a primeira de inúmeras pessoas e entidades que manifestaram solidariedade” após o cancelamento da mostra.
“A exposição vai agora poder ser vista a partir de sábado e até dia 26, neste sítio emblemático [Serra d’Arga], com uma envolvente natural extraordinária, com a particularidade de um amigo dos autores, o ‘designer’ e artista plástico Acácio Viegas, assumir a curadoria da exposição, propondo-se apresentar os trabalhos, integrando a sua interpretação da ideia inicial de cumplicidades com uma leitura pessoal das obras e dos acontecimentos dos últimos dias”. adiantou Carlos da Torre.
“A obra que aparentemente chocou mais é inspirada no tema recorrente das figuras femininas que representam Viana na estatuária. Uma figura feminina com um barco. É muito ousado o desenho? Não acho. Pode sentir-se um pendor erótico? Sim. Talvez. Mas daí até chocar, é preciso ter uma sensibilidade e uma cabecinha muito deformada, na minha opinião”, apontou Carlos da Torre.
Na sexta-feira, a exposição foi cancelada, pela Santa Casa da Misericórdia de Viana do Castelo, que gere a galeria da instituição, a cerca de 15 minutos da abertura, por alegados “conteúdos impróprios”.
A exposição começou a ser preparada com um mês de antecedência. Cerca de 15 dias antes da abertura os artistas enviaram fotografias de alguns trabalhos, sendo um deles o desenho de Carlos da Torre que terá motivado o cancelamento da mostra.
Na altura, a agência Lusa contactou o provedor da Misericórdia de Viana do Castelo, Mário Guimarães, mas sem sucesso. Hoje, a Lusa insistiu, igualmente sem sucesso.
Na base do cancelamento estará um painel em cerâmica, com um desenho digital do corpo, nu, de uma mulher, deitada, de pernas abertas e com uma caravela, um dos símbolos da cidade, num dos joelhos.
“O comportamento, a perturbação com que trataram o assunto e a decisão tomada, na minha opinião, transmite-se a instituição considerou a obra chocante”, afirmou.
Desde o cancelamento da exposição, nem Carlos da Torre, nem Arnaldo Alves foram contactados, nem contactaram com nenhum elemento da Misericórdia.
“Limitamo-nos a desmontar e entregar a chave [da galeria] conforme combinamos no telefonema que, na altura, nos comunicou que a exposição não abria”, disse.
Para Carlos da Torre, o “silêncio” da instituição demonstra “desprezo por tudo e por todos”.
“Não sentiram sequer necessidade de se explicarem perante a população. Têm o rei na barriga. Desprezam os artistas e o povo”, criticou.
Além do apoio do pintor Mário Rocha, que disponibilizou a Casa do Marco, espaço onde se realiza anualmente, há mais de duas décadas, o evento artístico “Arte na Leira”, Carlos da Torre e Arnaldo Alves receberam “muitas propostas” para mostrarem os seus trabalhos, em Viana do Castelo e no Porto”.
A mostra inicial previa a exposição de 21 obras de arte, sete de Carlos da Torre, e 14 de pintura e cerâmica de Arnaldo Alves.
“A exposição na Casa do Marco pode ter pequeníssimas diferenças, sem desvirtuar, porque o espaço é muito diferente e porque é nossa intenção é não interferir no trabalho de curadoria de Acácio Viegas. Mas essa diferença, se acontecer, será no conjunto que tem mais obras, o do Arnaldo. Nenhum dos trabalhos suscetíveis sairá”, garantiu.
No futuro, garantiu Carlos da Torre, não voltará a requisitar a galeria da Misericórdia para expor.
“Enquanto os responsáveis forem estes, de modo nenhum. Sinto-me triste. Desde 2015 que exponho com regularidade na galeria e não esperava tal situação, até pela relação de proximidade que mantinha com a instituição”.
Carlos da Torre não gosta de “ser o centro das atenções, nem ter os holofotes virados” para si, mas considerou que “o debate que este cancelamento suscitou pode ser útil, em diversos aspetos”.
“Sobre a forma como se lida com a arte, com determinados pudores que associam, não sei porquê à religião, até porque há coisas destas que a Igreja já resolveu há muito tempo. Parece que estamos sempre a voltar atrás. Parece que estão sempre a reabrir-se coisas que já foram discutidas e resolvidas”.
“Claro que teve avanços e recuos. Mas é primária esta reação. Ainda se estivéssemos a falar de pornografia, de coisas grosseiras, eu ainda percebia. Estamos a falar apenas de representações simbólicas. Não é fotografia. É um trabalho em que há subtileza, uma economia de linguagem que é preciso uma pessoa estar com problemas na cabeça para se sentir mal com uma coisa daquelas”, insistiu.