“Que a Senhora da Bonança volte a dar fé aos ancorenses para que haja mais pescadores”

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A Senhora da Ínsua regressou a Vila Praia de Âncora para a festa da Nossa Senhora da Bonança e teve à sua espera uma enchente de fiéis no porto de pesca. A procissão naval que parte de Caminha é um dos momentos altos desta romaria em honra da padroeira dos pescadores. O céu nublado, que parecia trazer mau tempo, abriu quando a Senhora da Ínsua chegou, o sol quente irradiou por entre as nuvens e iluminou a procissão em terra que passou por ruas atapetadas com sal.

Margarida Rodrigues, uma antiga atadora de redes de pesca e mordoma da Comissão de Festas da Senhora da Bonança, de 92 anos, era uma das devotas que mais, ansiosamente, aguardava pela chegada do barco que trouxe a Senhora da Ínsua. Sentada sobre as pedras do portinho de Vila Praia de Âncora, juntamente, com mais duas amigas pescadoras, Esperança e Ana Maria, lembrou a época em que atava as redes neste local, enquanto aguardava pela chegada do seu marido, um antigo bacalhoeiro, do alto mar.

“A vida, antigamente, era muito dura. Estávamos sete ou oito meses sem ver os nossos maridos. Hoje espero aqui pela chegada da Senhora da Ínsua, mas era aqui que costumava atar as redes de pesca. Era o pão de sustento para os meus filhos. Lembro-me que quando o mar estava bravo cheguei a chorar e a implorar muitas vezes à Senhora da Ínsua e à Senhora da Bonança para que o acalmasse. Felizmente, já me ouviram e salvaram muitas vezes. Agora é a minha vez de lhes devolver os favores”, exprimiu emocionada a devota nonagenária, enquanto apontava para o mar e gritava: “Já aí vem a santa!”

A chegada da procissão naval foi aplaudida pelas centenas de pessoas que aguardavam em terra e no rosto de vários devotos viam-se as lágrimas a escorrer. Glória Ribeiro, uma emigrante em Andorra e filha de pescador, foi uma das devotas que se abraçou à Senhora da Ínsua, muito emocionada. Contou que naquele dia fez 42 anos que se tinha despedido da santa desde que partiu para o estrangeiro e nunca mais teve a oportunidade de vir à Festa da Senhora da Bonança. Por isso, chorou de alegria quando finalmente abraçou e beijou a Senhora da Ínsua. 

Como convidada pelo dono do barco, a santa chegou até terra nos braços de Alexandra Vaz, presidente da Comissão de Festas da Senhora da Bonança, que também se emocionou ao ver aquele “mar de gente” à espera. “Este dia tem um sabor especial para mim porque o meu filho nasceu há, exatamente, 15 anos, precisamente, no dia em que estava a decorrer a procissão naval e isso tocou-me, é muito gratificante ver este mar de gente à espera da Senhora da Ínsua”, exprimiu Alexandra, florista, de 38 anos, filha de marinheiro. Com os olhos azuis marejados, Alexandra disse que cumpriu um grande sonho, mas que naquele momento “só queria entregar a santa e abraçar o seu filho Francisco”.

A receção simbólica da Senhora da Ínsua pela Senhora da Bonança, que a recebe como “convidada”, ficou ainda marcada pela habitual vénia, que colocou ambas as santas, frente a frente, no Portinho, antes de seguirem com a procissão até ao nicho do Senhor dos Aflitos, onde foi feito um sermão religioso.  

Como habitualmente, Jorge Sales foi o responsável por colocar a Senhora da Ínsua no andor e aparafusar a imagem. Há muito que este devoto e a sua família se dedicam à ornamentação dos 23 andores desta romaria que se destacam pelas flores artificiais todas feitas à mão. 

Ana Cristina, filha de pescador, foi a única mulher no meio de cinco homens a pegar no andor da Senhora da Ínsua e, “apesar do peso acrescido”, explicou que fez o “sacrifício” em homenagem ao seu irmão que faleceu no mar há 12 anos. “Eu costumo dizer que quem tem fé, não tem medo. Ainda por cima, a Senhora da Ínsua representa tudo para mim. É a alegria, a paz e o bem-estar quando preciso, mas é também a fé que me guia”, declarou, com as lágrimas nos olhos, esta ancorense de 54 anos, que dizia sentir um “bichinho inexplicável pelo mar”.

Responsável por zelar e abrir as portas da capela do Senhor dos Aflitos há 12 anos, Esperança, filha e mulher de pescador, aguardou cerca de uma hora, em frente à capela, pela chegada das santas para o “devido cumprimento ao Senhor dos Aflitos”, ao mesmo tempo que recordava “os tempos duros que enfrentou no mar”. “Sempre me agarrei muito à Senhora da Bonança e à Senhora da Ínsua. Antigamente, não havia motores nos barcos, era tudo a remos, tinha de se ter muita fé. Lembro-me de ter 17 ou 18 anos e de ir ao alcance do meu pai buscar, muitas vezes, os patelos, que eram uma espécie de caranguejo. Aqui, o mar sempre foi muito perigoso e muito difícil de atracar neste portinho”, afirmou a devota de 82 anos, confessando que ainda tem esperança de que “a Senhora da Bonança volte a dar fé aos ancorenses para que haja mais pescadores pela vila”. 

O mesmo desejo foi deixado por Carlos Castro, autarca de Vila Praia de Âncora. “Infelizmente, há cada vez menos pescadores em Vila Praia de Âncora. As pessoas não se dedicam tanto ao mar e a maioria dos mais velhos está reformada. No fundo, é uma arte que se está a perder lentamente. No entanto, eu ainda acredito que a Senhora da Bonança possa dar o ânimo e o alento a estes jovens”, afirmou o presidente da Junta de Vila Praia de Âncora, freguesia onde existem actualmente 80 pescadores no activo. “A reconfiguração do Portinho era um dos passos mais importantes que se podia tomar para cativarmos os jovens. No entanto, as obras a fundo ainda não estão sequer previstas. As dragagens estão a ser feitas, mas ainda não está nada a ser feito para o tal porto do mar e abrigo que os pescadores tanto desejavam para poderem entrar e sair em segurança do Portinho”, lamentou Carlos Castro.

Durante o sermão, o padre Manuel Moreira evidenciou a presença de peregrinos de Santiago nesta romaria e fez uma analogia com o nome da Senhora da Ínsua para exortar os devotos a resistirem às tentações. “Quero pedir-te que nos protejas, que transformes cada um de nós em ilha, em ínsua, não para nos isolarmos, mas para nos preservar das tentações, nos defender do maligno, nos afastar de tudo o que não é bom para a nossa caminhada espiritual”, apelou.

Satisfeito por ver tanta gente a assistir à procissão, o pároco de Vila Praia de Âncora admitiu, no entanto, que esta romaria tem enfrentado uma dificuldade em encontrar voluntários que assumam o leme da sua organização. “Houve uma geração mais antiga de pescadores que agora entende que deve estar nos seus lugares e nos últimos anos tem sido gente mais nova a tomar conta”, afirmou Valdemar Fernandes, convicto que a devoção à Senhora da Bonança não está abalada. “Sendo Vila Praia de Âncora uma terra que é atravessada por muita gente de muitos lados, percebe-se que há muitas pessoas que têm uma grande devoção à santa”, apontou, confirmando que o número de peregrinos de Santiago de todo o mundo a passar pela capela tem vindo sempre a aumentar. 

Miguel Alves, presidente da Câmara Municipal de Caminha, destacou a “união”, de “fé e de festa”, entre o concelho que esta romaria proporciona. “Esta é a maior festividade do concelho de Caminha. Uma festa que honra o Alto Minho, o norte do país, as tradições e ainda a fé destes homens do mar que tanto passam para colocar o pão na sua própria mesa, o peixe que todos comemos e, por isso, quando festejamos esta tradição também celebramos a segurança e a fé. Mas, acima de tudo, festejamos algo maior que é a unidade do concelho de Caminha, de Vila Praia de Âncora, que se juntou na fé e nesta festa que fala do passado e da memória daqueles que já estiveram no mar”, afirmou.

REPORTAGEM PUBLICADA NA EDIÇÃO Nº 1603 DO SEMANÁRIO ALTO MINHO -14 DE SETEMBRO DE 2022