António “Cunhou” a democracia em Viana

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Foi com o Santoinho em festa, em pleno mês de setembro, que António Cunha recebeu, a mando de Manuel Freitas, o convite para ser candidato à Câmara de Viana do Castelo, pelo PSD. A resposta não foi dada no imediato, mas houve uma certeza que António Cunha deixou: “Se disser que sim, é como independente que sou, não aceito nomes porque quem faz a equipa sou eu.” E assim começou a ser escrito mais um capítulo na vasta história de António Cunha, homem multifacetado e visionário, que foi o primeiro presidente da Câmara de Viana do Castelo, democraticamente eleito, após o 25 de Abril.

António Cunha liderou, aos 53 anos como independente, a lista do PSD para a Câmara de Viana, em 1976, que foi composta por Nuno Fernandes, Lucínio Araújo, José Gonçalves Pequeno. Domingos G. Afonso, Ilídio A. Cunha, Fonseca Ferreira, Jeremias M. Ramos, Alcino Lemos e Armando M. Sousa. Apontados como “personalidades partidariamente independentes”, cujo passado era a “garantia de um trabalho afincando e desinteressado em prol da terra”, os candidatos garantiam que nenhum necessitava de “assegurar tachos” e que era “mesmo com sacrifício” que aceitaram candidatar-se e assumiriam os futuros cargos. 

Aos vianenses saídos da ditadura, António Cunha apresentou-se como “homem do povo, de poucas letras”, um “exemplo daqueles que, vindo do nada social, subiram na vida à custa e só à custa de duro trabalho e de lúcidas realizações” e “inimigo figadal de teorias e teóricos, de filosofias e de ‘filósofos’”, sendo, por isso, “essencialmente um homem de ação”. Naquela altura, o trabalho de António Cunha já falava por si: era reconhecido como o principal promotor turístico de Viana do Castelo, aquém e além fronteiras, empresário com vários empreendimentos que dava emprego a cerca de 100 trabalhadores, conhecedor de várias latitudes e geografias e um devoto da dedicação laboriosa ao trabalho, apaixonado por Viana e desejoso de a projectar. 

Essa inquietude norteou o programa politico que António Cunha apresentou aos eleitores, com poder de encaixe suficiente até para aceitar “as críticas dos tradicionais “velhos do Restelo” ou daqueles que, com provinciana mentalidade, não são capazes de idealizar Viana-cidade-concelho para além dos estreitíssimos limites da Quelha dos Abraços”. 

Os eixos estratégicos que compuseram o programa politico da candidatura do PSD liderada por António Cunha foram cinco: ordenamento do território concelhio, que já incluía uma futura zona industrial e uma futura grande zona habitacional e turística; estruturas básicas; comunicações e transportes; pontos diversos; serviços camarários. 

É importante realçar que, em 1976, falar de uma zona industrial, para “indústria ligeira de razoável dimensão e indústria pesada”, era algo absolutamente inovador, principalmente num concelho ainda agrilhoado à pesada herança da ditadura. E a localização do porto de mar, já naquela altura, foi primordial na estratégia que António Cunha delineou para o concelho.  

Defensor da coesão territorial (antes de ser um chavão politico)

A tomada de posse como presidente da Câmara aconteceu no antigo Governo Civil de Viana do Castelo e, no discurso oficial, que escreveu à mão, António Cunha assumiu-se como “vianense de nascimento e coração, habitante de uma das regiões mais esquecidas e economicamente mais desfavorecidas”. “Quem vos fala é um simples cidadão que, tal como os presentes e todo o povo do Alto Minho, deseja o progresso desta região, progresso real, equitativamente distribuído por todas as populações”, acrescentou, ciente de que ainda havia gente “à espera do milagre da luz eléctrica ou do simples rasgar de um caminho”. António Cunha mostrou-se contra a tentação de “reduzir a área de actuação de um município à sede do concelho e no máximo às freguesias limítrofes” a apelou, logo na tomada de posse, para a Assembleia Municipal não cair nesse “tremendo erro”. 

Reiterando a sua independência em relação a partidos, o primeiro presidente da Câmara de Viana do Castelo defendeu a necessidade de “deixar à porta da autarquia a ideologia mais ou menos bela e o fervor partidário”. “Dificilmente seremos perdoados se viermos a transformar o Município em arena de lutas partidárias. Isto não significa menosprezo para com os militantes dos partidos, bem pelo contrário, é difícil conceber uma democracia política sem a existência de vários partidos, mas o importante é que não se transforme o poder do povo ou a democracia no poder do partido ou na partidocracia”, advogou António Cunha, que sempre se manteve aberto a todos os partidos e conviveu, inclusivamente, com alguns dos fundadores da democracia do pós 25 de Abril, incluindo Mário Soares, de quem seria mandatário, nas eleições presidenciais de 1986.

Projectou e concretizou a primeira zona industrial do concelho

O relatório de gerência da Câmara Municipal em 1978 é um documento que a família de António Cunha guarda como uma relíquia porque ali está literalmente a mão e o traço do empresário tornado político. Objectivo na forma como descreve o que foi feito e o que faltava fazer, António Cunha, sem ferramentas informáticas, desenhava a informação com geometria empírica que se revelava certeira. Exemplo disso é a distribuição de lotes da zona industrial do Neiva (1ª e 2ª fase) e a distribuição geográfica de mais de 1700 habitações sociais que mandou construir no concelho e que ainda hoje existem. 

Idealizada em 1976, a zona industrial do Neiva começou a ganhar forma em 1978, quando aparecem registados 32 pedidos para instalação de fábricas. No relatório de gerência da autarquia de então são apontadas três mais valias fundamentais deste projecto: “desaparece o perigo de amanhã construírem fábricas junto das habitações, como vinha acontecendo e que tantos problemas estão a causar e começa a nascer uma fonte de receita para a região que vai dar origem a um desenvolvimento geral e a mão de obra para centenas de pessoas desempregadas”. A criação desta zona industrial do Neiva, que hoje é uma referência regional de dinamismo empresarial, reflete uma estratégia subscrita pelos executivos camarários seguintes, que até há pouco tempo ainda venderam lotes de terreno adquiridos há 50 anos pela Câmara liderada por António Cunha.

Centro de congressos, central de camionagem e posto de turismo

Embalado pelo progresso industrial que antecipava em Neiva, António Cunha idealizou, em 1978, o que seria o grande projecto do seu mandato: criar um centro de congressos, museu do traje e centro comercial na velha casa de Luís Jácome, mais conhecida por Orfanato Velho, no centro da cidade. O Município comprou o imóvel, fez o projecto e até chegou a adjudicar a obra, tendo inclusivamente garantido uma comparticipação financeira estatal, numa época em que fundos comunitários não passavam de utopia. “Ninguém se apercebe do que vai ser Viana do Castelo daqui a quatro anos. Vai ser um salão de congressos, o que ao nível do país não existe, a não ser em Lisboa, na Gulbenkian. Viana vai ser muito mais movimentada, as previsões estão feitas e eu tenho a certeza do que vai acontecer”, profetizou António Cunha, citado no artigo de Maria Augusta de Alpuim, nos Cadernos Vianenses (tomo III), onde aparece publicada a maquete da “grandiosa obra a fazer na casa de Luís Jácome”. 

A ideia de António Cunha com esta obra era também criar uma fonte de receita para a Câmara, através da criação de 40 lojas comerciais. A previsão do autarca apontava para um rendimento anual para os cofres municipais na ordem dos “sete mil contos”. E no meio da vasta praça ajardinada, que iria nascer em frente ao edifício, estava previsto colocar o chafariz de pedra, encimado pela figura de Viana. Este projecto foi abandonado e António Cunha expressou publicamente a mágoa por isso, principalmente porque décadas depois chegou-se à conclusão que a sua visão de tornar Viana numa cidade de congressos tornou-se uma realidade. 

Outra das obras que idealizou e concretizou foi a construção da antiga central de camionagem, um equipamento inovador para a altura. António Cunha diligenciou a negociação para a compra dos terrenos e junto do Governo central para conseguir o financiamento para a obra que foi útil durante décadas até ser criada a nova solução no Interface rodo/ferroviário. Com uma sensibilidade explícita pelo turismo, António Cunha foi também o responsável pela aquisição do antigo hospital velho para ali ser criado um posto de promoção turística.

No relatório de gerência de 1978, António Cunha fez questão de registar o número e a origem dos turistas que passaram por Viana do Castelo, as obras e até as horas (e o preço a pagar pelas mesmas) que os trabalhadores municipais estiveram nas freguesias. E durante o seu primeiro e único mandato, os investimentos no concelho foram transversais: de caminhos, estradas e instalação de infra-estruturas básicas até campos de futebol. Para fazer essas obras, teve também que comprar máquinas que a Câmara não possuía na altura, incluindo retroescavadoras e camião do lixo. 

O filho de António Cunha, que iniciou um programa de celebração do centenário do nascimento pai, que se estende até ao final deste ano, admite a mágoa por ver que o legado que o pai deixou e o facto de ter sido o primeiro presidente da Câmara democraticamente eleito em Viana do Castelo não estão a ser assinalados. “O meu pai entendeu que devia dar o pontapé de saída para o desenvolvimento de Viana. Depois não continuou porque dizia que tinha deixado preparada uma estratégia de sucesso para Viana e estava na hora de regressar para a sua vida empresarial. O meu pai foi o Santos da Cunha de Braga em Viana”, vaticinou o filho Valdemar Cunha.