Morreu Zé Carvalhal, o “craque” da concertina que “fintou” a cegueira na Ermida

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Morreu, aos 72 anos, Zé Carvalhal, o conhecido tocador de concertina da Ermida, em Ponte da Barca. O tocador foi baptizado com o nome de José Fernandes Antunes, mas era conhecido como Zé Carvalhal, tornando-se um dos mais reconhecidos tocadores de concertina da região, instrumento que aprendeu a tocar sozinho. O seu funeral está marcado para o próximo domingo, dia 9 de fevereiro, pelas 16 horas, na Igreja Paroquial da Ermida.
Em maio de 2024, o Semanário Alto Minho publicou uma entrevista exclusiva com Zé Carvalhal, feita no café da Ermida, que lhe pertencia, e teve a oportunidade de o ver a tocar concertina.

Entrevista publicada na edição nº 1691 de 16 de maio de 2024:
Da Ermida, em Ponte da Barca, José Carvalhal voou pelo mundo graças à concertina que diz ter aprendido a tocar sozinho em três dias. Editou nove discos e já perdeu a conta às cassetes que gravou. Cego desde os sete meses, por causa de uma meningite, este tocador e cantador ao desafio de 71 anos permanece na Ermida, onde tem o único café da aldeia serrana, palco de grandes festas e desgarradas com amigos, que vêm de longe pela única estrada sem saída que ali existe, para conviver e “beber” um pouco da sua sabedoria e bom humor (quando está para aí virado).

Nascido e criado na Ermida com mais nove irmãos, José Carvalhal aprendeu desde cedo a desenvencilhar-se sozinho. A pé, percorria os trilhos até Lourido, aldeia mais próxima de onde apanhava autocarro para ir até Ponte da Barca. “Demorava cerca de 40 minutos para chegar lá baixo a Lourido e para cima era uma hora”, descreveu. “Antes disso, íamos a pé até à estrada nacional que vai para o Lindoso”, acrescentou o tocador, que não frequentou a escola. “A minha escola foi a trabalhar na concertina. Com a sachola andei algumas vezes, mas diziam-me que me ficava mal”, gracejou, garantindo que nunca encarou a cegueira como uma dificuldade. “Eu cheguei a saltar o rio de um lado para o outro, em Cidadelhe, no mês de janeiro. Na altura, cheguei a pensar que ainda ia parar a Viana, mas nunca me perdi. Só se houvesse alguma moça que me fizesse perder a cabeça”, acrescentou, no mesmo tom bem disposto. A concertina acabou por ser um chamariz para as moças. “Eu tocava concertina e elas vinham ter comigo, já tinha gravado três discos e elas pensavam que eu era um rei”, confirmou.

Fazia de conta que tocava num fole de papelão para cativar contrabandistas

Filho de comerciante, que também foi o primeiro presidente da Junta da Ermida depois do 25 de Abril, José ajudava o pai na mercearia. Para trazer os produtos da mercearia, José ia até Lourido com burras, mulas ou éguas. “O meu pai ia até à vila e trazia tudo até Lourido e eu levava-lhe as duas burras para carregar e trazer até cá cima”, explicou o tocador da Ermida, cuja estrada estreita e íngreme que lhe dá acesso só foi construída há 44 anos. “A estrada chegou aqui a 13 de Junho de 1980… o meu pai foi o primeiro presidente da Junta e era um socialista ferrenho”, contou, acrescentando que a casa do seu pai foi a primeira da Ermida a ter uma televisão. José Carvalhal conta que, antes do 25 de Abril, a polícia costumava ir à Ermida de três em três semanas. “Se encontrasse algum isqueiro multava, as pessoas que tinham varas com ponta afiada para picar o gado enfiavam no chão para esconder, se não levavam logo multa”, contou.

José Carvalhal diz que aprendeu a tocar concertina a partir de um papelão que dobrava em forma de fole para cativar contrabandistas a darem-lhe qualquer coisinha. “Quando era pequeno, passavam por aqui muitos contrabandistas e para me darem bolachas e rebuçados punha-me em cima de um banco e tocava no papelão, as palhetas eram a boca. Eles achavam graça e enchiam-me os bolsos de tudo. Foi assim que comecei. Quando apanhei uma concertina, aprendi sozinho, em três dias”, relatou o tocador invisual, que se deixou levar pelo som da música e depressa aprendeu a cantar ao desafio.

Com 18 anos, gravou o primeiro de nove discos, entre os quais “A Malícia das Mulheres”, há quase 50 anos, que por pouco não foi disco de ouro. O jeito natural para tocar concertina depressa transformou a vida de José Carvalhal, que viajou para o Brasil, Estados Unidos, Canadá, Luxemburgo, França e Suíça como um verdadeiro embaixador da autenticidade minhota. “Você é o Messi ou o Ronaldo da concertina. Qual prefere?”, perguntamos. “Nenhum deles, só gosto das moças e da concertina”, gracejou.

O abraço do Tony Ramos no Brasil

Em 1984, foi um mês para o Brasil e actuou na Casa do Minho do Rio de Janeiro, na Casa de Portugal em S. Paulo e na TV Globo. “Estive duas horas e meia na TV Globo e a primeira pessoa que encontrei foi o Tony Ramos que me deu um abraço, parecia que já me conhecia”, contou.

Pai de Rui Carvalhal, treinador do Limianos, o tocador fica orgulhoso quando ouve o filho dizer que os dois são “os melhores amigos do mundo”. “Desde pequeno que o tratei com carinho, tudo o que ele me pedia, eu dava. Nunca fui capaz de dizer que “não” aos meus filhos. Em pequeno, ele pediu-me um telemóvel, mandou vir pelo correio, o carteiro entregou-o aqui no café, eu paguei e dei-lhe”, contou o tocador, há muito presença assídua nas festas de S. Bartolomeu, acompanhado também pelo filho. “Eu ia a tocar, ele ia agarrado a mim e dava-me o lenço para limpar o suor”, descreveu.

 

VIDEO – Zé Carvalhal, o “craque” da concertina da Ermida