“Freguesias continuam a depender da boa vontade das câmaras”
A lei da descentralização para as freguesias permite que estas continuem a depender da boa vontade “casuística” dos respetivos municípios para exercerem as suas competências próprias, criticou um especialista em direito administrativo, com trabalhos sobre autarquias.
Segundo Carlos José Batalhão, a atual lei de transferência de competências para as freguesias deu muitas voltas “para ficar tudo na mesma”, no sentido em que as freguesias continuam a depender dos municípios para exercerem competências que a própria lei lhes atribui.
Carlos José Batalhão salientou que o legislador quis, na lei de descentralização para as freguesias, de 2019, acabar com a delegação de competências dos municípios através da celebração de acordos de execução entre estas duas entidades, como existia até então, para atribuir determinadas competências às freguesias.
A reforma foi feita à semelhança do que já acontecia com as freguesias de Lisboa, que passaram a ter competências próprias, refletidas no respetivo orçamento, na reforma territorial de 2013, salientou.
“Só que depois nós percebemos, ao estudar e ao ver quer o que consta do decreto-lei [da descentralização para as freguesias] que o que se está a passar na prática, é que essa descentralização por transferência afinal depende também de um outro contrato. Não se chama agora acordo de execução, mas chama-se auto de transferência. Portanto, vai continuar a pôr as câmaras municipais, ou melhor, as freguesias a contratualizar com os municípios essa transferência. Portanto, isto não é nenhuma transferência”, afirmou.
Num artigo publicado na mais recente edição da Revista das Freguesias, Carlos José Batalhão sustenta que o legislador não considerou a realização de estudos multidisciplinares e, ao deixar “para cada ‘caso concreto’ essa solução”, esta “será assim casuística, dependente de um poder negocial diferenciado e de eventual manobra política”.
“Portanto, o que é que está a acontecer em quase todo o país? Umas [freguesias] que têm capacidade negocial conseguem ficar com as competências e com o envelope financeiro respetivo. As que não têm – ou porque o município não quer – continua tudo na mesma”, acrescentou.
Também a Associação Nacional de Freguesias (Anafre) tem vindo a denunciar situações de falhas no processo de transferência de competências dos municípios para as freguesias.
Segundo os dados mais recentes, das 2.300 freguesias que concordaram com a transferência de competências em 2019, apenas 724 assinaram acordos com 80 municípios até ao final de 2020.
Numa nota publicada esta semana, a Anafre voltou a exigir “maior rapidez no processo de transferência de competências”, denunciando “a falta de vontade política da maioria dos municípios na concretização do processo de descentralização de transferência de competências para as freguesias, não respeitando a legislação vigente, o que coloca em causa todo o processo”.
“A associação acredita que é o interesse no controlo político dos eleitos locais nos concelhos ainda não aderentes que mantém os executivos das freguesias numa inexplicável dependência da vontade política do município, limitando assim a criatividade e a capacidade realizadora daqueles executivos”, salientou a Anafre.
Em fevereiro de 2019, o Governo aprovou o diploma setorial de transferência de competências para as freguesias, contemplando áreas como a gestão de estruturas de atendimento ao cidadão, mas também outras tarefas que habitualmente eram delegadas por municípios, como a gestão e manutenção de espaços verdes, cemitérios, feiras e mercados, a limpeza das vias e espaços públicos, a manutenção e substituição do mobiliário urbano e a afixação de publicidade de natureza comercial.